Eu procurei você, e você estava tão diferente... Falava de empatia, de abraçar o mundo inteiro, de defender os fracos e oprimidos. Não parecia a mesma pessoa que me machucou por anos seguidos sem que eu te fizesse nada ou oferecesse alguma ameaça, parecia a pessoa boa que sempre me disseram que você era, e eu quis acreditar que era verdade, que você finalmente tinha aniquilado aquele lado seu que me marcou de um jeito tão negativo. Sim, você era só uma criança quando o alvo era eu, mas já tinha suas noções de certo e errado quando te vi outra vez sendo cruel com pessoas que não mereciam crueldade. Muito além de ferir os outros, você contaminava suas amizades, elas absorviam aquela sua maldade, eu vi! Eu vi acontecer e vi elas se tornarem pessoas boas longe de você. Eu era louca? Só eu via aquilo acontecer? Você sempre teve esse jeito que conquista os outros, se era você não era possível ser algo ruim. Por muito tempo achei mesmo que o problema estava em mim, que eu de alguma forma merecia que você tirasse tudo que eu tinha. Eu tentei jogar o teu jogo quando apanhei o suficiente pra saber me defender, mas aquilo nunca me vestiu bem. Não importava o quanto eu tentasse, era impossível pra mim sentir o prazer que você sentia naquilo. Hoje somos pessoas adultas, e mesmo olhando pra trás e te vendo pequena, pestinha, algo que hoje eu me livraria como me livro de um mosquito zunindo no ouvido, ainda dói. Fizemos parte de um sistema que hoje eu vejo se repetir e posso explicar. Uma criança viciada em poder e outra mais fraca, alvo fácil pra o exercício de dominação. Não se engane, não tenha pena de mim, não pense que isso me vem a memória com frequência. Eu já estive muito pior, das amarras que você pôs em mim quando eu era mais nova só restam as cicatrizes, poucas sequelas. Isso esteve, de certa forma, como uma bala alojada no corpo. O buraco fechou, mas ela estava ali, impedindo de sarar por completo... Este texto é minha cirurgia de remoção. Nas memórias da minha infância vai estar a cicatriz, mas lembrar não vai mais doer. Ainda não te culpo, mas já não me culpo também. Não é culpa de ninguém, foi como tinha que ser, por acaso. o acaso me fez um favor, me mostrou os dois lados da face humana na tua face antes mesmo que eu pudesse entender que essa tua imagem se refletia no mundo inteiro e até em mim. Por conta disso eu já era adulta quando criança, como eu vejo agora que você também era. E vendo isso eu não resisto em me perguntar o por quê. Eu quero abraçar aquela criança que era você, entender o que te fazia ser daquele jeito. E você? Eu procurei você e você parecia diferente. Será que você abraçaria a criança que fui eu e diria que tudo ficaria bem?